Páginas

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Alunos terminam ensino médio sem aprender

Alunos terminam ensino médio sem aprender
Avaliações mostram que 90% não têm o conhecimento mínimo esperado para a fase. Veja exemplos práticos

Compartilhar: Calcular quanto um trabalhador deve receber em cada parcela do 13º salário pode parecer uma tarefa trivial após 11 ou, mais recentemente, 12 anos de estudo que levam uma pessoa até o fim do ensino médio. A maioria dos jovens que concluíram essa fase na última década, no entanto, não consegue chegar ao valor correto. O exemplo ajuda a entender uma estatística alarmante sobre o conhecimento dos alunos no terceiro ano do ensino médio. Segundo o Ministério da Educação, apenas 10% dos estudantes adquirem os conteúdos esperados.



Tentativa de um aluno do 3º ano de resolver questão de matemática
A terceira reportagem da série especial do iG Educação sobre o ensino médio mostra como os jovens se formam com conhecimentos irrisórios. Nem todos os alunos dessa etapa escolar passam por avaliações do MEC – como ocorre no ensino fundamental – mas os resultados são suficientes para produzir estatísticas assustadoras.

A mais recente delas, do Ibope, mostra que 62% das pessoas com ensino médio não são plenamente alfabetizadas. A expectativa era que, aos 18 anos, e tendo frequentado a escola durante a infância e a adolescência, os jovens soubessem ler e entender textos longos, mas só 38% o fazem.



Ensino médio afasta alunos da escola
Opinião: escola tenta ensinar demais
Para quem ainda está estudando, o governo aplica, desde 1999, uma prova por amostragem do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Em todas as edições, o porcentual de alunos do 3º ano do ensino médio que chega à pontuação adequada nas provas de matemática variou entre 9,8% e 12,8%. No último exame, de 2009, foram 11%. “O que preocupa é que não saímos deste patamar, mesmo quando temos uma melhora no fundamental. Quando o jovem vai para o médio, estaciona”, comentou Mozart Neves Ramos, consultor do movimento Todos Pela Educação, em apresentação de números organizados pela ONG a partir da avaliação feita pelo governo.

Considerando apenas os conhecimentos de língua portuguesa, o resultado é menos pior, porém ainda chocante: 28,9% alcançaram a nota mínima no teste de 2009. Os números valem para todos os estudantes, incluída a rede privada. Considerado só o sistema público, o porcentual cai para 23,3% em português e 5,8% em matemática. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), a amostra apenas das particulares é pequena para concluir o porcentual de estudantes desta rede que aprende o necessário.

Exemplos em São Paulo, Paraná e Maranhão

O Ministério da Educação mantém entre suas publicações a escala do Saeb de língua portuguesa e de matemática com todas as capacidades que são esperadas dos estudantes ao final do ensino médio. Para ilustrar o que os números sobre a aprendizagem apontam, o iG selecionou um item em cada disciplina, buscou exemplos de situações em que eles sejam pedidos e levou um teste a jovens matriculados em escolas em São Paulo, no Paraná e no Maranhão.

Em matemática, o iG sugeriu um problema já usado pelo MEC e uma questão elaborada pelo professor e autor de livros didáticos Luiz Imenes. Ambos avaliam a capacidade de “resolver problemas que envolvam variação proporcional entre três grandezas (regra de três simples)”, o que só 7% conseguem, segundo a estatística do governo.

Em língua portuguesa, foi escolhida uma habilidade que apenas 6% têm: a de distinguir um trecho opinativo entre as informações de um texto. Novamente foi apresentada uma questão usada pelo governo e outra baseada em dois textos do iG Educação que tratam do mesmo fato, um informando e outro opinando.

-



Em São Paulo, as perguntas foram apresentadas a estudantes da escola estadual José Monteiro Boanova, que obteve o melhor resultado entre as unidades públicas no último ranking do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) na capital paulista, desconsiderando as escolas técnicas e unidade da Universidade de São Paulo (USP). Dos cinco alunos questionados, nenhum conseguiu responder corretamente qualquer uma das questões de matemática. A primeira parcela do 13º de um trabalhador que recebe R$ 1.200 e trabalhou oito meses de um ano, variou entre R$ 150 para um aluno e R$ 6.120 para outro. Já em português, houve dois acertos em cada pergunta.

Em São Luiz, três alunos do centro de ensino médio Manoel Beckman, no bairro Bequimão, zona de classe média da capital maranhense receberam as questões e não acertaram nada. Em uma das provas, uma aluna se confundiu e respondeu “sim” a uma questão que pedia um valor matemático. Nas questões de língua portuguesa, o resultado foi o mesmo. Um deles, aproveitou para mostrar como vai a gramática: “Os dois textos é opinativo”, escreveu.

Os melhores resultados, ainda que não sejam bons, vieram do Paraná. Sete alunos do colégio estadual Manuel Borges de Macedo, em Rio Branco do Sul, responderam as perguntas e, finalmente, alguém chegou às respostas corretas de matemática. “O problema do 13º salário é algo que dá para fazer de cabeça, mas a maioria dos alunos do ensino médio não consegue entender a relação entre os dados de um enunciado para saber qual conta pode ser feita”, diz o professor Imenes.

E as outras matérias?

Se os diagnósticos em matemática e língua portuguesa são ruins, a situação em relação a outras disciplinas sequer é conhecida. O Saeb segue a mesma escala aplicada ao ensino fundamental e só tem as duas matérias consideradas essenciais desde a alfabetização.

No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são cobrados conteúdos de ciências humanas (história, filosofia, sociologia e geografia) e ciências naturais (física, química e biologia). Mas só quem quer faz a prova de acesso a programas universitários, e a escola não recebe um diagnóstico sobre como seus estudantes se saíram por conteúdo.

A única avaliação de ciências feita no Brasil dá indícios de que o patamar é o mesmo verificado em português e matemática. No programa de avaliação internacional de estudantes (Pisa, na sigla em inglês), feito pela Organização para Cooperação de Países Desenvolvidos (OCDE), com estudantes de 15 anos – que deveriam estar no 1º ou 2º ano do ensino médio – os brasileiros aparecem em 53º lugar em ciências entre 65 países. É a mesma colocação obtida em leitura, e melhor do que a 57º posição em matemática.

Reflexo na universidade

Com o aumento do acesso à universidade, possibilitado pela expansão tanto do sistema público como de programas de bolsa e financiamento em instituições particulares, muitos destes estudantes chegam ao ensino superior. No total, 15% dos jovens de 18 a 29 anos estão na faculdade ou já a concluíram. Para alguns especialistas, o reflexo do ensino médio ruim inclui a queda da qualidade das universidades e das pesquisa que devem ser realizadas nelas – além de cidadãos mal formados para a vida, como mostrou a reportagem publicada na terça-feira.

Para Elizabeth Balbachevsky, livre docente do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora participante de grupos internacionais na área de educação para jovens, as universidades também devem colaborar. "No mundo todo, o aumento do acesso ao ensino superior levou para as faculdades um novo público. Elas também devem ajudar os alunos a fazer um ensino médio bom ou a completar suas habilidades paralelamente ao curso superior. É isso ou deixá-los prosseguir sem boa formação."

*colaboraram Luciana Cristo, iG Paraná, e Wilson Lima, iG Maranhão

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Ensino médio afasta aluno da escola

Etapa foca apenas no preparo para o vestibular, mas não prepara jovens "para o mundo", segundo educadores


Até a 8ª série, Evelyn Manuel Rodrigues era a típica boa aluna, com caderno caprichado, gosto pelos estudos e notas acima da média. Na 1ª série do ensino médio, seu rendimento caiu, faltou várias vezes às aulas, chegou atrasada tantas outras, acabou reprovada e desistiu de estudar. Longe de ser uma exceção, ela entrou para um grupo que consiste na metade dos estudantes desta etapa de ensino: os que desistem antes de terminá-la. A escola não consegue manter o interesse dos adolescentes.

A falta de atratividade é tema da segunda reportagem da série do iG Educação sobre o ensino médio. Além dos alunos que deixam de estudar nesta fase, muitos dos que ficam não demonstram vontade de aprender, o que contribui diretamente para torná-la a pior etapa da educação brasileira.


Para especialistas, ensino médio com o currículo atual é inútil para a maioria dos estudantes
“O ensino médio, como está, é algo inútil na vida da maioria dos jovens”, afirma Elizabeth Balbachevsky, livre docente do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora participante de grupos internacionais na área de educação para jovens. Para a ela, a orientação para o vestibular, objetivo de quase todas as escolas desta etapa é um desperdício.

Leia o restante da série:
A pior etapa da educação do Brasil
Opinião: Adolescentes procuram escola só por diploma
“Para quem não está na perspectiva de entrar na faculdade, a sala de aula não tem nada a oferecer. O ensino brasileiro tem uma carga muito forte, toda preparatória para o acesso à universidade e não para a vida ou o curso superior em si”, comenta. O problema é que a maioria não vai prestar o tão esperado processo seletivo, principalmente antes de experimentar primeiro o mercado de trabalho: só 15% dos jovens brasileiros de até 29 anos fizeram ou estão fazendo um curso superior. Nos países mais desenvolvidos esta porcentagem dobra, mas ainda fica muito longe de ser maioria.

O coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, concorda que o foco do ensino médio precisa ser ajustado. “No mundo todo, a fase tem um caráter terminativo. Dali para frente a pessoa está preparada para começar a vida adulta, pode até ser na faculdade, para quem quer, mas também pode ser trabalhando ou em qualquer projeto. A educação básica está concluída”, diz.


Para Ayrton Souza, única função do ensino médio é preparar para o vestibular
Hoje aos 19 anos, Evelyn Rodrigues, a jovem que abre esta reportagem, percebeu a falta que lhe faz os estudos. Nos três anos em que ficou longe da sala de aula, trabalhou como tosadora de cães, foi morar com o namorado e ficou grávida. “Nesta época, eu queria trabalhar. Quando arrumei um emprego, achei que estava aprendendo mais lá do que na escola. A aula parecia não ter muito haver com minha vida. Agora sei que era fundamental para melhorá-la.”

“Acho que a escola podia dar um curso”

Os alunos do ensino médio reconhecem o objetivo pré-vestibular da escola. Ao ser questionado sobre para que serve essa fase, Ayrton Senna da Silva Souza, de 16 anos, estudante do 3º ano na escola estadual José Monteiro Boanova, no Alto da Lapa, área nobre de São Paulo, resume a função em uma frase: “Para mim, esta é a etapa que vai mostrar quem está pronto para entrar na faculdade”, disse.


Recém-formado, Carlos Educardo Dias acha que a escola podia ter oferecido "cursos" que ajudassem na busca do emprego
Quando a pergunta é o que gostariam que a escola oferecesse, a resposta muda. “Um curso”, responde Carlos Eduardo Dias, de 18 anos, que se formou na mesma unidade em dezembro. Ele espera fazer curso superior um dia, quando souber melhor em que área quer se especializar e tiver dinheiro para pagar a mensalidade. Enquanto isso, trabalha como auxiliar em uma concessionária de veículos. “Tive sorte de ser indicado, mas acho que a escola podia dar um curso que ajudasse mais, de informática, de vendas, algo assim.”

Outra colega do 3º ano, Eliza Rock da Silva, de 17 anos, mesmo tendo a universidade como meta, gostaria de ter mais autonomia e um ambiente melhor para aprender. “Acho que se os alunos tivessem o direito de escolher parte do curso, diminuiria o desrespeito pelos professores e, quem tem interesse, conseguiria estudar. Eu gostaria.”

A superintendente do Instituto Unibanco, Wanda Engel, sugere, além de conteúdos voltados ao mercado de trabalho, mais atividades culturais e esportivas nas escolas. Ela lembra que até pouco mais de uma década, o ensino médio era uma "festa" para os jovens que tinham acesso a ele. Os alunos se envolviam em grêmios estudantis, festivais culturais, competições esportivas e outras atividades que desapareceram da maioria das instituições. Para a educadora, só há dois motivos capazes de manter os jovens na escola: “ou eles vão porque vale o esforço, vão aprender algo útil e conseguir emprego; ou porque há atividades atrativas, que os envolvem”.



Para Eliza, mais autonomia geraria respeito em sala de aula para interessados poderem estudarFormação do ser humano

Nem só o mercado de trabalho precisa de jovens bem formados. O professor de Políticas Educacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Pablo Gentile, lembra que os jovens também são cidadãos, eleitores e ajudam a definir a cara da sociedade brasileira. "O ensino médio deveria se preocupar com a formação do ser humano", resume. Ele entende que a adolescência é um momento de transformação da pessoa e, portanto, é essencial que bons valores sejam apresentados. "O ensino médio é uma oportunidade impar para que o jovem se depare com o conhecimento que vai torná-lo ativo e produtivo”, afirma.

Para ele, em vez de um conteúdo voltado ao vestibular ou ao mercado de trabalho imediato, as escolas deveriam focar nas disciplinas que ampliam o entendimento do mundo em que vivem, com noções de política, filosofia, sociologia, ciências, português e matemática. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tenta atrair a escola para esses focos, ao solicitar nas provas de acesso a boa parte das universidades públicas mais conhecimentos gerais e capacidade de raciocínio do que conteúdos específicos. “Um cidadão melhor se tornará, inclusive, bom profissional.”

Ensino médio: a pior etapa da educação do Brasil



Série especial do iG mostra por que os adolescentes perdem interesse pela escola, acabam desistindo ou não aprendem o que deveriam




Há duas avaliações possíveis em relação à educação brasileira em geral. Pode-se ressaltar os problemas apontados nos testes nacionais e a má colocação do País nos principais rankings internacionais ou olhar pelo lado positivo, de que o acesso à escola está perto da universalização e a comparação de índices de qualidade dos últimos anos aponta uma trajetória de melhora. Já sobre o ensino médio, não há opção: os dados de abandono são alarmantes e não há avanço na qualidade na última década. Para entender por que a maioria dos jovens brasileiros entra nesta etapa escolar, mas apenas metade permanece até o fim e uma pequena minoria realmente aprende o que deveria, o iG Educação apresenta esta semana uma série de reportagens sobre o fracasso do ensino médio.



O problema é antigo, mas torna-se mais grave e urgente. As tecnologias reduziram os postos de trabalho mecânicos e aumentaram a exigência mínima intelectual para os empregos. A chance de um jovem sem ensino médio ser excluído na sociedade atual é muito maior do que há uma década, por exemplo. “Meus pais só fizeram até a 5ª série, mas eram profissionais bem colocados no mercado. Hoje teriam pouquíssimas e péssimas chances”, resume Wanda Engel, superintendente do Instituto Unibanco, voltado para pesquisas educacionais.

Ao mesmo tempo, a abundância de jovens no País está com tempo contado, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). O Brasil entrou em um momento único na história de cada País em que há mais adultos do que crianças e idosos. Os especialistas chamam o fenômeno de bônus demográfico, pelo benefício que traz para a economia. Para os educadores, isso significa que daqui para frente haverá menos crianças e adolescentes para educar.

“É agora ou nunca”, diz a doutoranda em Educação e presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude, Fabiana Costa. “A fase do ensino médio é crucial para ganhar ou perder a geração. Ali são apresentadas várias experiências aos adolescentes. Ele pode se tornar um ótimo cidadão pelas décadas de vida produtiva que tem pela frente ou cair na marginalidade”, afirma.

História desfavorável
O problema do ensino médio é mais grave do que o do fundamental porque até pouco tempo – e para muitos até agora – a etapa não era vista como essencial. A média de escolaridade dos adultos no Brasil ainda é de 7,8 anos e só em 2009 a constituição foi alterada para tornar obrigatórios 14 anos de estudo, somando aos nove do ensino fundamental, dois do infantil e três do médio. O prazo para a universalização dessa obrigatoriedade é 2016.

Por isso, governo, ONGs e acadêmicos ainda concentram os esforços nas crianças. A expectativa era de que os pequenos bem formados fizessem uma escola melhor quando chegassem à adolescência, mas a melhoria no fundamental não tem se refletido no médio.

Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, a questão envolve dinheiro. Quando o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef) foi criado, em 1996, repassava a Estados e municípios verba conforme o número de matrículas só naquela etapa. “O dinheiro não era suficiente para investir em tudo e foi preciso escolher alguma coisa”, diz o especialista.

A correção foi feita em 2007, quando o “F “da sigla foi trocado por um “B”, de Educação Básica, e os repasses de verba passaram a valer também para o ensino médio. “Só que aí, as escolas para este público já estavam sucateadas”, lamenta Cara.

A diferença é percebida pelos estudantes. Douglas Henrique da Silva, de 16 anos, estudava na municipal Guiomar Cabral, em Pirituba, zona oeste de São Paulo, até o ano passado quando se formou no 9º ano. Conta que frequentava a sala de informática uma vez por semana e o laboratório de ciências pelo menos uma vez por mês.


À esquerda, escola municipal Guiomar Cabral e, em frente, a estadual Cândido Gomide em São Paulo: diferença que pode ser percebida por quem passa é maior para quem estuda

Em 2010, no 1º ano do ensino médio, conseguiu vaga na escola estadual Cândido Gomide, que fica exatamente em frente à anterior. Só pelos muros de uma e outra, qualquer pessoa que passa por ali já pode notar alguma diferença de estrutura, mas os colegas veteranos de Douglas contam que ele vai perceber na prática uma mudança maior.

“Aqui nunca usam os computadores e não tem laboratório de ciências”, afirma Wilton Garrido Medeiros, de 19 anos, que também estranhou a perda de equipamentos quando saiu de uma escola municipal de Guarulhos, onde estudou até 2009. Agora começa o 2º ano na estadual de Pirituba, desanimado: “Lá também tinha mais professor, aqui muitos faltam e ninguém se dedica.”

Até a disponibilidade de indicadores de qualidade do ensino médio é precária. Enquanto todos os alunos do fundamental são avaliados individualmente pela Prova Brasil desde 2005, o ensino médio continua sendo avaliado por amostragem, o que impossibilita a implantação e o acompanhamento de metas por escola e aluno e um bom planejamento do aprendizado.

A amostra, no entanto, é suficiente para produzir o Índice da Educação Básica (Ideb), em que a etapa é a que tem pior conceito das avaliadas pelo Ministério da Educação. Foi assim desde a primeira edição em 2005, quando o ensino médio ficou com nota 3,4; a 8ª série, 3,5; e a 4ª série, 3,8; em uma escala de zero a 10. Se no ensino fundamental ocorreu uma melhora e em 2009 o conceito subiu, respectivamente, para 4 e 4,6, os adolescentes do ensino médio não conseguiram passar de 3,6.

“A etapa falha na escolha do conteúdo, que não é atrativo para o estudante, e também não consegue êxito no ensino do que se propõe a ensinar”, diz Mateus Prado, presidente do Instituto Henfil e colunista do iG que escreverá artigos especialmente para esta série, que durante os próximos dias conduzirá o leitor a conhecer o tamanho do problema e refletir sobre possíveis soluções.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

15 mil alunos pagam por cursos da USP

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

"A Universidade de São Paulo (USP) é pública e gratuita", afirma o site oficial da instituição. Neste ano, porém, 15 mil matrículas uspianas (de um total de quase 114 mil) serão preenchidas por alunos pagantes.

Um MBA com o título "Real estate - economia setorial e mercados", ou pós-graduação lato sensu, na prestigiosa Escola Politécnica da USP, sai por R$ 29.040. Dá para parcelar em 24 vezes. A promessa para quem vencer a carga horária de 420 horas é receber "Certificado USP".

As aulas são dadas no campus do Butantã (zona oeste de São Paulo), e a maioria dos professores pertence ao corpo docente da USP.
Para a turma de humanas, tem o curso com nível de pós lato sensu chamado marketing político, ministrado aos sábados na ECA (Escola de Comunicações e Artes).
Nos cursos pagos, não se fala em "preço" ou "mensalidade". Em vez disso, o desembolso recebe o nome de "investimento". Assim, o site da ECA diz que o "investimento" é de 20 parcelas de R$ 780. Total: R$ 15.600.

Não faltam opções para o pessoal das biológicas. Como o curso de especialização em prótese dentária, ministrado pela Faculdade de Odontologia da USP de Ribeirão Preto. Para ter aulas uma vez por semana, ao longo de 24 meses, o estudante deverá "investir" R$ 1.200 mensais. Total: R$ 28.800.

Serão, neste ano, mais de 500 opções de cursos pagos, segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, pró-reitora de Cultura e Extensão Universitária. "Todos homologados pela Câmara de Cursos de Extensão", assegura.
Raíssa (o nome é fictício), 32, formou-se em veterinária na Unip, depois de tentar três vezes a Fuvest (vestibular da USP). O jeito foi tornar-se adicta em "práticas profissionalizantes", pagas é claro, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Raíssa já tem dois certificados com a cobiçada logomarca da USP em seu escritório. Quer mais.

Segundo a pró-reitora Maria Arminda, os cursos pagos "ajudam a universidade a manter atividades de extensão com face social, voltadas a um público carente".
Os cursos pagos da USP abrangem as áreas de aperfeiçoamento, atualização e especialização (para público já graduado) e de difusão (para público mais amplo).
Isso significa que os cursos de graduação e de pós stricto sensu ainda seguem a tradição da gratuidade, que vem da fundação da USP, em 1934.

A USP também oferece 351 cursos gratuitos de extensão. São cursos, entretanto, com "pouco apelo de mercado", como definiu um aluno interessado em se aprofundar na língua francesa. Esse curso é pago, da mesma forma que o de alemão ou o preparatório para o Toefl (o teste de proficiência em língua inglesa).
Cursos grátis de línguas, neste ano, só os de armênio, galego, iídiche e tcheco.

Pagando, pode-se fazer o curso de fundamentos da cerâmica, voltado para público acima de 16 anos. Preço: R$ 250 por mês. Duração de 4 meses. Ou um de estética e gestão da moda, ou de desenho, ou de tecnologia da informação. Ou de gestão hospitalar, de prótese sobre implantes dentários.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

É um erro falar que existe nova classe média, diz sociólogo

UIRÁ MACHADO
DE SÃO PAULO
Autor do livro "Os Batalhadores Brasileiros", o sociólogo Jessé Souza afirma que a ascensão social de 30 milhões de pessoas no governo Lula não produziu uma "nova classe média", mas uma classe social diferente, que ele chama provocativamente de "batalhadores".
Assim como fizera em seu livro anterior, Souza procura determinar as características dessa classe por um recorte diferente do que ele chama de economicista e quantitativo, fugindo tanto de análises pelo consumo e renda quanto de abordagens marxistas "unidimensionais".
Abaixo, trechos da entrevista sobre a classe que, para ele, "parece se constituir, com o resgate social da ralé, na questão social, econômica e política mais importante do Brasil contemporâneo".


Folha - Após lançar o livro "A Ralé Brasileira", o senhor agora publica "Os Batalhadores Brasileiros". Qual a diferença entre a "ralé" e os "batalhadores"?

Jessé Souza - Os dois livros se enquadram no projeto de longo prazo de estudar as classes sociais mais importantes do Brasil contemporâneo de maneira não economicista e quantitativa, como sempre acontece.
Quando falo em estudos economicistas, penso tanto nas descrições estatísticas baseadas em níveis de consumo e renda quanto nas descrições marxistas fundadas numa leitura unidimensional da realidade.
Alguns desses estudos são importantes como ponto de partida descritivo, mas o que nenhum deles oferece é uma leitura sociocultural da realidade que nos possibilite compreender o principal: a produção diferencial de seres humanos a partir do pertencimento a classes sociais distintas.
Ainda que a renda seja um componente importante do pertencimento de classe, pessoas muitos diferentes podem ter renda semelhante.
Para que possamos explicar e compreender uma realidade social complexa é necessário penetrar na dimensão mais recôndita das motivações profundas do comportamento social e nos dramas, sonhos, angústias e sofrimentos humanos que elas implicam.
O ganho em compreensão em relação a uma realidade opaca e complexa é insofismável.
Acredito que, por conta desse tipo de interesse instruído teórica e metodologicamente, foi possível perceber, talvez pela primeira vez, a existência do um terço de brasileiros excluídos como uma única classe, ou seja, pelo estudo dos pressupostos afetivos, morais e emocionais que explicam a origem, a manutenção e o destino social provável às pessoas dessa classe específica.
No caso da "ralé", formada pela ausência dos pressupostos que permitem a incorporação das capacidades exigidas pela sociedade competitiva moderna, é possível perceber a irmandade entre pessoas que moram no interior do Piauí ou na periferia de São Paulo quando a regra é a fragmentação e, portanto, a cegueira da percepção.
É essa cegueira que percebe essa classe de abandonados sociais apenas no registro espetacularizado e manipulador da oposição polícia/bandido, aprofundando todos os preconceitos das classes do privilégio contra esses esquecidos, explorados como mão de obra barata por esses mesmos privilegiados.
O ganho em termos de uma percepção alternativa, totalizadora e crítica da realidade social como um todo não é pequeno.
No caso dos "batalhadores", esse mesmo ponto de partida nos permitiu, na contramão dos estudos dominantes sobre esse assunto, perceber tanto o potencial de chance e de oportunidade que efetivamente existe nessa nova classe que se constitui defronte os nossos olhos quanto articular a dimensão do sofrimento e dor humanos sistematicamente silenciados por uma leitura superficial e triunfalista da realidade.
Em seu livro, o senhor questiona a afirmação de que o governo Lula alçou 30 milhões de brasileiros à classe média e diz até que se trata de uma mentira. Por quê?
Eu não nego que houve uma efetiva ascensão social de 30 milhões de brasileiros nem que esse fato seja extremamente importante e digno de alegria. O que questiono é a leitura dessa classe como uma classe média.
A classe média é uma das classes dominantes em sociedades modernas como a brasileira porque é constituída pelo acesso privilegiado a um recurso escasso de extrema importância: o capital cultural nas suas mais diversas formas.
Seja sob a forma de capital cultural técnico, como na "tropa de choque" do capital (advogados, engenheiros, administradores, economistas etc.), seja pelo capital cultural literário dos professores, jornalistas, publicitários etc., esse tipo de conhecimento é fundamental para a reprodução e legitimação tanto do mercado quanto do Estado.
Consequentemente, tanto a remuneração quanto o prestígio social atrelados a esse tipo de trabalho --e da condução de vida que ele proporciona-- são consideráveis.
A vida dos "batalhadores" é completamente outra. Ela é marcada pela ausência dos privilégios de nascimento que caracterizam as classes médias e altas.
E, quando se fala de "privilégios de nascimento", não se está falando apenas do dinheiro transmitido por herança de sangue nas classes altas. Esses privilégios envolvem também o recurso mais valioso das classes médias, que é o tempo.
Afinal, é necessário muito tempo livre para incorporar qualquer forma de conhecimento técnico, científico ou filosófico-literário valioso.
Os batalhadores, em sua esmagadora maioria, precisam começar a trabalhar cedo e estudam em escolas públicas muitas vezes de baixa qualidade.
Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de superexploração da mão de obra.
Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras, daí nossa hipótese de trabalho desenvolvida no livro que nega e critica o conceito de "nova classe média".

Qual o ganho analítico de enxergar os batalhadores como uma classe diferente da classe média tradicional? E quais as implicações que essa diferenciação traz para o governo Dilma?
O ganho é tanto analítico quanto político.
Essa diferenciação permite, em primeiro lugar, perceber a realidade social como ela é, com suas ambiguidades e contradições constitutivas.
Depois, como em toda leitura sóbria da realidade, ela possibilita criticar todo tipo de manipulação política ou de leitura triunfalista da realidade.
Com relação não apenas ao governo Dilma, mas em relação ao futuro do Brasil, essa nova classe de trabalhadores, típica do novo tipo de capitalismo financeiro que logrou se globalizar, parece se constituir --com o resgate social da ralé-- na questão social, econômica e política mais importante do Brasil contemporâneo.
Para mim, existem duas alternativas possíveis: a primeira é essa classe ser cooptada pelo discurso e prática individualista e socialmente irresponsável que caracterizam boa parte das classes dominantes no Brasil; a segunda alternativa é essa classe assumir um papel de protagonista e inspirar, pelo seu exemplo social, a efetiva redenção daquela classe social de humilhados sociais que chamo provocativamente de ralé.
Muitos dos batalhadores que entrevistamos vinham, inclusive, da própria ralé, mostrando que as fronteiras entre as classes são fluidas e que não existem classes condenadas para sempre.
Esse ponto me parece fundamental, já que é precisamente a existência desses abandonados sociais --e não qualquer tipo de patrimonialismo advindo de um suposto "mal de origem" português, como ainda hoje acredita nossa ciência social dominante-- o que nos separa das sociedades mais igualitárias e socialmente mais justas do globo.

Quando o senhor afirma que os batalhadores alcançaram um "lugar ao sol à custa de extraordinário esforço", o senhor não está assumindo a tese do mérito individual, a qual o senhor habitualmente critica?

Quando critico a ideologia do mérito individual, não estou negando a extraordinária importância do esforço individual, nem, muito menos, a necessidade de reconhecimento social efetivo para os desempenhos singulares em qualquer área da vida.
Qualquer noção de justiça social moderna tem que articular responsabilidade social e reconhecimento dos desempenhos singulares e extraordinários.
Há que proteger tanto a ideia de que somos responsáveis uns pelos outros quanto estimular o esforço pessoal.
Quando critico a ideia de mérito individual, é apenas pelo seu uso amesquinhado como ideologia, ou seja, como falsa percepção da realidade.
É muito diferente quando uma classe inteira de privilegiados de nascimento, com boas escolas, estimulados em casa o tempo todo, com tempo livre desde sempre para fazer o que bem entende e dinheiro para investir em cursos de línguas e pós-graduações valorizadas, chama o próprio sucesso de mérito individual e ainda acusa as classes que não tiveram acesso a qualquer desses privilégios sociais de preguiçosos, burros e culpados pelo próprio fracasso.
A tese do mérito individual que crítico é, portanto, herdeira do modo como o liberalismo sempre foi recebido no Brasil: um discurso para legitimar os privilégios de nascimento das classes abastadas, como se esses privilégios decorressem do esforço apenas de indivíduos, e não da herança de sangue e de classe.
No estudo dos batalhadores, o que impressionou foi o extraordinário esforço de superação de condições efetivamente adversas, todas contribuindo antes ao desânimo e ao desespero do que ao enfretamento corajoso das condições negativas ao sucesso social e econômico.
O título do livro foi uma homenagem à luta cotidiana e silenciosa desses brasileiros.
Este termo "batalhadores" sinaliza o fato de que o que perfaz o cotidiano dessas pessoas é a necessidade de "matar um leão por dia" como forma de vida de toda uma classe social que tem que lutar diariamente contra o peso da própria origem.

Nos casos empíricos de seu livro, há operadores de telemarketing, uma profissão relativamente nova, e feirantes, ocupação bem antiga. Como as duas funções aparecem juntas para caracterizar tipos de uma nova classe social que é tão conforme o modelo atual do capitalismo?
Para responder a esta pergunta, temos que compreender, antes de tudo, ainda que sucintamente, o que significa "modelo atual de capitalismo", de modo a podermos compreender de maneira mais adequada como essa "nova classe trabalhadora" se torna, não só no Brasil, mas em todos os países emergentes, como China e Índia, sua classe suporte, como diria Max Weber, mais típica.
O que hoje é chamado por muitos de "capitalismo financeiro" representa um movimento que começa nos anos 80 no mundo e se propaga nos anos 90 entre nós. O pano de fundo desse movimento eram taxas de lucro decrescentes em nível mundial já havia décadas.
Mas as mudanças não foram apenas nem principalmente de retórica política. Elas comandaram transformações profundas tanto na forma de produção de todo tipo de mercadoria quanto no regime de trabalho.
Ao fim e ao cabo, o conjunto de mudanças apontou no sentido de um aumento da velocidade de circulação do capital, em grande medida determinado pelos cortes com gastos de controle e supervisão de trabalho, que caracterizavam a produção do tipo fordista tradicional, como existe ainda hoje, por exemplo, em algumas indústrias automobilísticas.
Amplos setores da produção de mercadorias de todo tipo são realizados agora por trabalhadores em fábricas a céu aberto ou pequenas unidades familiares que se acreditam, inclusive, empresárias de si próprias, o que explica, também, que o epíteto de "nova classe média" tenha caído tão rápido no gosto de todos, inclusive dos próprios batalhadores.
Na verdade, o capital financeiro que flui sem qualquer controle por todos os pontos do globo pode, agora, se valorizar a taxas de lucros e juros sem precedentes também a partir de atividades realizadas por um exército mundial de trabalhadores --que abundam precisamente nos países populosos ditos emergentes-- sem direitos trabalhistas, sem passado sindical e sem tradição de lutas políticas, que muitas vezes não pagam impostos, que trabalham de dez a 14 horas ao dia e ainda nem sequer precisam de capatazes ou supervisores, porque se acreditam "livres" e patrões de si mesmos.
Essa mudança abrange não apenas as "novas atividades", como as da informática, mas também redefinem e transformam, inclusive, atividades tradicionais, como a dos feirantes.

Quais são os valores dessa classe batalhadora?

Em primeiro lugar, há que ficar bem claro que uma pesquisa sobre valores sociais profundos, como a que realizamos, não pode imaginar que esses valores sejam de fácil acesso e estejam na cabeça das pessoas de modo claro e óbvio.
Ao contrário, como diria Max Weber, a primeira necessidade dos seres humanos não é a de dizer a verdade --muito menos a verdade sobre si mesmos--, mas sim justificar e legitimar a vida que realmente levam.
Por conta disso, uma pesquisa de sociologia crítica é diferente de uma pesquisa meramente quantitativa. Nas pesquisas quantitativas podemos saber, por exemplo, em quem as pessoas vão votar ou que sabonete elas usam, precisamente porque suas autoimagens quase nunca estão em jogo nesse tipo de questão.
Quem se interessa em perceber os estímulos mais profundos da conduta social, ao contrário, tem que realizar um esforço interpretativo e hermenêutico que as pesquisas quantitativas comuns não fazem e perceber os valores na prática cotidiana efetiva da vida das pessoas.
Afinal, valores são aquilo que nos conduzem para um lado e não para outro da vida, mesmo que de modo pré-reflexivo ou inconsciente.
Nós optamos por analisar a vida no trabalho e na família de nossos informantes, de modo a retirar dessas esferas fundamentais os impulsos e estímulos práticos --os tais "valores" na nossa visão-- da conduta de vida.
Neste particular, o horizonte valorativo dos batalhadores pode ser mais bem percebido no confronto com os membros da ralé.
A principal diferença em relação aos excluídos e abandonados sociais é a constituição de uma ética articulada do trabalho duro.
Afinal, não basta querer trabalhar em qualquer área da vida. É necessário também poder trabalhar, ou seja, ter logrado incorporar (literalmente "tornar corpo", de modo pré-reflexivo e automático) os pressupostos emocionais e morais do trabalho produtivo no mercado competitivo.
O capitalismo atual pressupõe crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como porta de entrada em qualquer de seus setores competitivos.
Como esses pressupostos faltam por diversos motivos à ralé, esta é condenada aos trabalhos braçais ou com mínimo de conhecimento, servindo, portanto, de mão de obra barata para qualquer serviço duro, desvalorizado e pesado.
Esse não é o único horizonte dos batalhadores.
Os batalhadores são quase sempre vindos de famílias pobres, mas, no entanto, bem estruturadas, com os papéis de pais e filhos reciprocamente compreendidos, exemplos de perseverança na família e estímulo consequente --baseado em exemplos concretos-- para o estudo e para o trabalho.
Temos nas famílias dessa classe a incorporação e internalização efetiva da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo que sempre está pressuposta tanto em qualquer processo de aprendizado na escola quanto em qualquer trabalho produtivo no mercado competitivo.
Sem disciplina e autocontrole é impossível, por exemplo, concentrar-se na escola --daí que os membros da ralé diziam repetidamente que "fitavam" o quadro negro por horas sem aprender.
Essa "virtude" não é natural, como pensa a classe média que universaliza indevidamente às outras classes suas virtudes e privilégios para depois culpar a vítima do abandono social, como se o abandono e a miséria fossem uma escolha.
Por outro lado, sem pensamento prospectivo --ou seja, a visão de que o futuro é mais importante do que o presente--, não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida pela impossibilidade de cálculo e de planejamento e pela prisão no aqui e agora.
No caso dos batalhadores, a incorporação dessa economia emocional e moral mínima é duramente conquistada, às vezes no horizonte do aprendizado familiar, às vezes tardiamente, nas mais diversas formas de socialização religiosa.
Assim, ainda que falte a essa classe o acesso às formas mais valorizadas de capital cultural --monopólio das "verdadeiras" classes médias--, não lhes falta força de vontade, perseverança e confiança no futuro, apesar de todas as dificuldades.
Em um contexto minimamente favorável, como o que vivemos até agora, esse exército de batalhadores se mostra então disponível e atento à menor possibilidade de trabalho rentável e de melhoria das condições de vida por meio, por exemplo, do consumo de bens duráveis que antes lhes eram inatingíveis.

Durante as eleições deste ano, alguns debates ganharam fortes contornos religiosos, como foi o caso da discussão sobre o aborto. A religião é mais importante para os batalhadores do que para a classe média tradicional?

O tema da religião é tão importante para essa classe que até dedicamos toda uma parte do livro a esta temática. Além disso, a socialização religiosa dessa classe perpassa boa parte dos textos construídos a partir das análises empíricas.
É preciso cuidado com esse tema, já que ele pode servir para que se construa uma nuvem de preconceitos contra essa classe.
É, sem dúvida, correto que as religiões evangélicas --como, aliás, todas as religiões em alguma medida-- exigem o sacrifício do intelecto, o que, efetivamente, não ajuda no exercício da tolerância nem no desenvolvimento das capacidades reflexivas dos seres humanos.
Em troca, no entanto, essas religiões oferecem o que a sociedade como um todo, o Estado ou mesmo algumas das famílias menos estruturadas dessa classe jamais deram a eles: confiança em si mesmos, autoestima, esperança e a força de vontade para vencer as enormes adversidades da vida sem privilégios de nascimento.
Nesse sentido preciso, tudo leva a crer que a religião seja efetivamente mais importante para esses setores do que para as classes médias estabelecidas, ainda que nunca tenhamos feito nenhum estudo sistemático. Mas me parece uma hipótese plausível.
E não apenas as religiões evangélicas, que são muito importantes especialmente nos núcleos urbanos. Também a religião católica, no interior do Nordeste, ainda muito forte e atuante, cumpre uma função fundamental de baluarte da solidariedade familiar e como fundamento de uma ética do trabalho em muitos aspectos semelhantes à ética do protestantismo.

Se é verdade que a classe batalhadora não é uma classe média em sentido tradicional, e se aí vai uma crítica, não é possível ao menos imaginar que os filhos dos "batalhadores" terão melhores oportunidades que seus pais? Nesse sentido, a crítica não perderia sua força? Não é possível imaginar que a ascensão à classe média se dará em "duas etapas"?

Sem dúvida que isso é possível. Até porque o Brasil é um país singular no sentido de ser extremamente desigual e, ao mesmo tempo, apresentar forte mobilidade social muitas vezes ascendente.
É preciso, no entanto, também levar em consideração que uma concepção sociocultural das classes sociais implica a percepção de que as mudanças sociais tendem a preservar aspectos importantes da história e da tradição das classes sociais envolvidas nessas mudanças.
Como nos constituímos como seres humanos de modo antes de tudo afetivo e emocional, pela incorporação insensível e pré-reflexiva daquilo e de quem amamos, somos sempre muito mais parecidos com nossos pais --ou de quem quer que tenhamos recebido afeto e amor-- do que as vezes muitos imaginam.
Mas o que é importante é que as mudanças sociais e pessoais são, sim, sempre possíveis. Mais importante ainda é lembrar que as mudanças sociais jamais acontecem apenas pelo jogo das variáveis econômicas.
O aprofundamento dos processos de aprendizado social e político que o Brasil começa a realizar são também fundamentais para a constituição de uma sociedade em que todos tenham efetiva condição de participar da competição social com um mínimo de igualdade de condições, que é o que muitos entre nós desejam.

A nova classe batalhadora faz surgir um novo tipo de preconceito no Brasil?

Sem dúvida. Basta olhar qualquer das revistas que analisam o padrão de consumo dessa classe sob a égide da visão de mundo da classe média estabelecida. Ela aparece sempre como um tanto vulgar e sem o "bom gosto" que caracterizaria os estratos superiores.
Como regra geral, as classes superiores se veem sempre como as "classes do espírito", da personalidade refinada e sensível, e percebem as classes baixas como as "classes do corpo" e, portanto, rudes, primitivas e sem refinamento.

Uma das características dos "batalhadores" parece ser a precariedade da situação econômica e social. De que forma o governo pode melhorar ou piorar a situação dessa classe?

Eu acho fundamental o aprofundamento mais consequente tanto da política social --no sentido de que apenas uma pequena ajuda econômica tópica não irá retirar o um terço de brasileiros da exclusão e do abandono-- quanto de políticas de crédito e de estímulo aos batalhadores.
A "parte de baixo" da população brasileira tem demonstrado sobejamente que consegue transformar qualquer pequena ajuda em progresso social e econômico significativo que interessa e beneficia a todos os setores da sociedade inclusive os superiores.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Professores obesos discriminados pelo Estado de SP

Crick no link acima e assista o vídeo da reportagem da TV Record


Professores concursados afirmam que sofreram preconceito por parte do governo do Estado. Os médicos que fizeram a perícia alegaram que obesidade vale reprovação. Muitos dos 56 mil aprovados no concurso foram barrados no exame médico e declarados inaptos para o cargo mesmo com seus exames médicos apontando normalidade. O governador Geraldo Alckmin negou discriminação por parte da junta médica.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Do site do Observatório da Imprensa:

LEITURAS DE VEJA
Palpites dogmáticos
Por Gabriel Perissé em 18/1/2011
A revista Veja não economiza espaço quando se trata de divulgar os palpites de Gustavo Ioschpe sobre educação. Não haveria um articulista mais articulado para essa tarefa? Ou, pensando melhor, Ioschpe e Veja vivem em total harmonia. As afirmações de um, abalizadas pela outra, demonstram, apesar do tom peremptório e seguro, uma fragilidade teórico-prática impressionante.
Ioschpe costuma aludir a pesquisas (não especificando, na maioria das vezes, que pesquisadores são esses, que pesquisas são essas, onde consultá-las), dando como líquido e certo tal ou qual verdade. Na Veja de 13/10/2010, por exemplo, escreveu um artigo, "Educação de qualidade: de volta ao futuro", do qual destaco o seguinte trecho:
"[...] as pesquisas empíricas [...] mostram que a presença de computadores nas escolas não tem nenhum impacto sobre o aprendizado."Contudo, já no final do século 20, pesquisadores do mundo inteiro reuniam experiências que demonstravam como a utilização de computadores e da internet tornam as práticas docentes motivadoras. Bastaria citar um estudo de 1998, "The emerging contribution of online resources and tools to classroom learning and teaching", e, para entender a necessidade de a escola ingressar na Idade Mídia, o livro de Don Tapscott, A hora da geração digital (Agir Negócios, 2010).
Ainda nesse artigo de Ioschpe, outra pérola:
"Sindicatos mais poderosos pressionam para que o grosso da verba de educação seja gasto em aumentos salariais e diminuição do número de alunos em sala de aula, duas variáveis que não têm relação com a qualidade de ensino."Tentativa de corrigir uma injustiçaContudo, qualquer psicopedagogo, qualquer educador haverá de nos dizer que em turmas reduzidas o professor conseguirá dar atenção mais individualizada, poderá perceber melhor progressos e dificuldades de cada aluno, detectando os problemas e intervindo com mais eficácia. E, quanto aos salários, é difícil acreditar que pesquisadores (motivados por bolsas de estudos, talvez com ajuda do exterior...) dediquem seu tempo para descobrir que aumentos salariais não motivam professores...
Em dezembro do ano passado, visivelmente abalado com a vitória de Dilma Rousseff, Ioschpe, em novo artigo (Veja, 29/12/2010), intitulado "Aumentaram os gastos, mas a qualidade...", teve a coragem de escrever:
"[...] esse governo [federal] foi extremamente generoso nas concessões e omisso nas cobranças. Instituiu um piso nacional de salário para o magistério, atualmente em 1.024,00 reais. O salário médio do professor brasileiro subiu de 994 reais em 2003 para 1.527,00 reais em 2008 [...]. O governo, porém, não fez nenhuma intervenção mais forte nos cursos de formação de professores das próprias universidades federais, que continuam despejando no mercado profissionais despreparados para o exercício da docência."Ora, não se pode usar o advérbio "extremamente" em relação a uma generosidade nada extrema. Aliás, nem de generosidade se trata, mas da tentativa (tardia!) de corrigir uma injustiça: o salário de um professor de escola pública com diploma universitário equivale, hoje, a 60% do que recebem, em média, profissionais com o mesmo nível de ensino.
Realidade se resume a poucas palavrasE não são as universidades federais que "despejam" professores despreparados no mercado! Na década de 1990, calculava-se que 80% dos professores da rede pública estadual de São Paulo formaram-se em faculdades privadas. Em 2008, o MEC divulgou estudo segundo o qual 70% dos professores aptos a lecionar no ensino básico do Brasil formaram-se em faculdades e universidades particulares.
Andar na contramão da realidade pode provocar acidentes. No caso de Ioschpe, suas declarações entram em rota de colisão com o óbvio. Nem precisaríamos recorrer a teses de doutorado ou pesquisas financiadas por bancos ou assemelhados. Em novembro e dezembro de 2010, e neste mês de janeiro, o articulista publicou em três partes um artigo cujo título não é nada ambicioso: "Como melhorar a educação brasileira". Basta-nos ler (e brevemente comentar) alguns dos seus melhores momentos...
"Muitos professores chegam atrasados a suas aulas. Perdem tempo fazendo chamada, dando recados e advertências. É um desperdício" (Veja, 10/11/2010).Correto. Mas essa constatação é insuficiente. Por que muitos professores chegam atrasados? E por que a chamada é tão prolongada (ao mesmo tempo que exigida pela burocracia escolar)? E por que cabe aos professores darem recados e advertências? Se Ioschpe fizesse as perguntas certas aos que vivem essas realidades estaria realizando verdadeira pesquisa empírica e acabaria por descobrir uma realidade que se pode resumir em poucas palavras: professores sobrecarregados e turmas com grande número de alunos.
Uma breve pesquisa informa o óbvioOutro momento de Ioschpe, influenciado pelos noticiários sobre o Morro do Alemão:
"É curioso: nossos governantes criaram coragem para invadir o Morro do Alemão, mas as universidades públicas continuam sendo consideradas território perigoso demais para a ação saneadora do estado. Esculachar bandido armado de metralhadora é mais fácil do que peitar os doutores da academia, que permanecem livres para perpetrar seus delitos intelectuais" (Veja, 22/12/2010).Mais do que curioso... é incrível que alguém possa, impunemente, comparar bandidos e professores universitários! Que tipo de "limpeza" deveria ser feita nas universidades públicas? Não seria o caso de imaginar que as particulares merecem igual ou maior rigor?
Um último parágrafo:
"Em termos de regime de trabalho, ao contrário dos desejos dos sindicatos, a maioria das pesquisas mostra que não faz diferença, para o aprendizado do aluno, quantos empregos o professor tem, se trabalha em uma escola ou mais" (Veja, 19/01/2011).De novo, impressiona ler uma afirmação dessas. Será que, além de desconhecer a escola pública, Ioschpe ignora a realidade vantajosa das escolas particulares, cujos alunos obtêm os melhores resultados no Enem?
Uma breve pesquisa na internet informa o óbvio. As melhores escolas possuem laboratórios, computadores e biblioteca. Seus professores são bem remunerados, o que lhes permite dedicação exclusiva, ou quase exclusiva, com tempo necessário para prepararem aulas inovadoras, em geral empregando recursos tecnológicos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Professoras vetadas por obesidade


Professoras dizem ter sido vetadas por obesidade

Elas foram reprovadas em exame médico de concurso para dar aula no Estado

Ao menos 5 disseram à Folha ter convicção de que exclusão se deve a peso; governo enfatiza que obesidade é doença



Reprovada por perícia, Lídia de Souza não assumiu cargo

TALITA BEDINELLI
DE SÃO PAULO

Candidatas a um cargo de professora da rede estadual paulista afirmam que foram impedidas de assumir o trabalho por serem obesas.
A Folha recebeu reclamações de cinco docentes de três cidades diferentes da Grande SP, que dizem que seus exames clínicos não tinham alteração e, mesmo assim, foram consideradas "inaptas" pelo Departamento de Perícias Médicas de SP.
As professoras participaram do concurso que selecionou 9.304 docentes para dar aulas a partir deste ano.
Elas foram aprovadas em uma prova, participaram de um curso de formação e passaram em uma segunda prova. No começo deste ano, foram submetidas à perícia.
Na semana passada, ouviram dos diretores de escolas onde dariam aula que foram reprovadas no exame.
Elas afirmam que ainda não tiveram acesso ao laudo e que não foram informadas oficialmente do motivo da reprovação. Entraram com recurso e com um pedido de vistas do resultado.
Duas dizem que ouviram dos médicos, no dia da consulta, que provavelmente não seriam aprovadas pela perícia em razão do peso.
Elas têm de 90 kg a 114 kg e duas delas são obesas mórbidas, com IMC (Índice de Massa Corporal) acima de 40.
"O endocrinologista disse que eu não passaria porque estou obesa. Mas meus exames de colesterol, diabetes, eletrocardiograma estão todos bons", afirma Lídia Canuto de Souza, 30, professora de matemática da rede há três anos, como não efetiva.
"Ouvi do médico que eu estava deformando meu corpo e que teria problemas de saúde no futuro. Não tinha uma alteração nos 15 exames que fiz", diz Andréia Pereira, 36, professora de artes.
Uma sexta professora obesa, que ainda não sabe se é considerada apta, diz ter ouvido o mesmo do médico.
Entre os casos ouvidos pela Folha, há o de uma professora de inglês que é concursada na rede há 12 anos. No novo concurso, buscava a possibilidade de dar aulas de português. "Nunca peguei licença por causa do peso, nunca tive problema de saúde", afirma Fátima Fernandes, 41, que diz que já era obesa.
A Secretaria de Gestão Pública, responsável pela perícia, não comentou caso a caso. Disse que "há casos em que a obesidade pode ser considerada doença, segundo os padrões da OMS [Organização Mundial da Saúde]".
A OAB-SP e advogados ouvidos pela Folha afirmam que a exclusão de um candidato por obesidade é considerada discriminação e fere a Constituição Federal.
Endocrinologistas afirmaram que a obesidade não é fator de inaptidão para a função de professor.
"Há um preconceito contra o obeso. Isso não é motivo para ele ser excluído da seleção", diz Marcio Mancine, presidente do departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.