Páginas

sábado, 12 de setembro de 2009

Carta-Manifesto

Às professoras e aos professores da rede pública estadual de São Paulo
por ocasião da IV Conferência Estadual de Educação da Apeoesp

Na Escola e na Luta

Apresentação

A Apeoesp realizará sua IV Conferência Estadual de Educação entre os dias 17 e 19 de novembro, na cidade de Serra Negra. Será uma importante ocasião para debatermos nossas concepções pedagógicas e avaliarmos como a política educacional adotada em São Paulo desde antes e aprofundada pelo governo Serra afeta a qualidade do ensino e nosso trabalho, no dia-a-dia da sala de aula. É necessário avançarmos na pauta para compreendermos o sentido mais geral das mudanças que vêm sendo propostas e, de fato, implementadas.

Neste sentido, o Coletivo Estadual “Apeoesp na Escola e na Luta” temos acumulado generosas e valiosas contribuições de professores que militam em suas respectivas escolas e, para além delas, no sindicato, para fazer o bom debate sobre os rumos da educação no Estado de São Paulo, bem como acompanhando criticamente as medidas do governo federal. Esta carta-manifesto é um primeiro esforço de sintetizar nossas posições para socializá-las nesse momento que antecipa a Conferência.

Contudo, a forma que o sindicato encontrou para realizar sua Conferência tende a restringir o debate, por não permitir a publicação de teses, mas apenas de um documento guia. Em um tempo em que os ataques ao professorado se intensificam, é imperativo que se dê vazão ao debate das análises do processo, das posições e proposições diversas àquelas dos que já comandam o sindicato; estes orientam a um debate “propositivo”, quando sequer partimos de uma mesma visão de conjunto sobre o sentido que a educação pública tem tomado — sobretudo se juntamos às nossas análises os feitos (e as omissões) do governo federal.

É que o setor majoritário na diretoria da Apeoesp alinha-se ao governo Lula e quer preservá-lo de maiores críticas. Não se trata aqui da acusação de “partidarização do debate”. Cremos que as diferentes posições são legítimas e, por isso mesmo, merecem ser destacadas e debatidas, a fim de melhor avaliarmos que rumos podemos e devemos seguir. Em primeiro lugar, pela defesa da independência do movimento sindical em relação ao governo; em segundo, pela defesa dos espaços democráticos de debate, sem os quais é impossível construir qualquer compromisso unitário sobre o que fazer.

O momento atual exige de nós juntar as forças para resistir aos ataques, o que já não é pouca coisa, e assim criar possibilidades para também avançarmos na conquista de direitos e de novas condições de trabalho, disputando entre os professores qual concepção de educação e de escola defendemos, qual “qualidade educacional” perseguimos, quais os instrumentos de luta temos à disposição e quais ainda deveremos criar.

As razões da ‘crise da educação’

Que a educação esteja em crise não é novidade para ninguém – e nem é coisa recente. Crise e educação são dois termos que sempre se acompanham no debate público, desde a antiguidade da civilização ocidental até os dias atuais. O que varia de uma época à outra é a caracterização da crise, como tradução histórica de anseios e interesses em disputa na sociedade — vale dizer, da disputa ideológica de projetos de sociedade. Responder a questão sobre que educação defendemos é dizer que sociedade pretendemos. Do mesmo modo, acusar a crise é apresentar ali um obstáculo ao projeto de sociedade.

Isto deveria ser suficiente para aplacar nossas angústias de querer por fim à crise da educação – ela é permanente. Pois, se a educação, pelo esforço que realiza de cultivar as gerações mais jovens, projeta a sociedade futura; e se o futuro é algo ainda não determinado, a crise então se instala, inapelavelmente: trata-se da disputa hoje em torno das decisões que determinarão o futuro, ao menos em um de seus elementos. Traduzindo e explicitando, de que crise estamos falando? De quem é essa crise? Quais as soluções que se apresentam e o que elas projetam para o futuro?

Entretanto, todos fomos levados a crer na existência de uma crise educacional, assumindo-a como se fosse “nossa”, despendendo energias para superá-la — sem nos darmos conta que a caracterização da crise, veiculada nos discursos da imprensa e das autoridades, não é a mesma crise que efetivamente experimentamos no nosso dia-a-dia; assim, nossos esforços deixarão intactas as razões mais íntimas de nossa própria crise, embora possam eventualmente até “resolver” a crise do lado deles. Com efeito, o projeto deles caminha e avança.

Trocando em miúdos: há dois projetos antagônicos de sociedade: um em que permanecerá prevalecendo os interesses do capital e do mercado; e outro, o dos socialistas – para quem a crise, aqui entendida como os obstáculos ao seu projeto de sociedade, é bem maior do que divulgam e, por outro lado, é crise que nem se tem notícia, quando a crise responde pelo nome: luta de classes.

Despolitização da educação e contenção orçamentária

A atual crise da educação é caracterizada pelo baixo desempenho escolar da grande maioria dos estudantes – o que é fato inegável. Então, considera-se que a crise seja da “qualidade da educação” e apressam-se em apresentar intervenções no processo educativo, como se houvesse uma evidência acerca de que “qualidade” perseguimos e também concordância sobre os meios de alcançá-la. No entanto, a questão da “qualidade” é uma questão de natureza política: definir o que é “qualidade” sempre dependerá das finalidades a que visamos, desde os propósitos escolares mais específicos até o projeto de sociedade no qual nos engajamos, cuidando de estabelecer entre eles as mediações necessárias.

É preciso compreender então como a questão educacional foi de tal modo despolitizada a ponto de fazer convergirem propostas, ações e meios, à “esquerda” e à “direita”. Não é por acaso a estranha coincidência em políticas públicas adotadas pelos governos municipais, estaduais e pelo federal. A falta de dissenso é correlata à hegemonia do capital e ao enfraquecimento da organização dos trabalhadores. Quem pauta o que é “qualidade” na educação e administra os meios de promovê-la são os interesses de acumulação, concentração e preservação do capital.

Se não, vejamos: todo esforço em conquistar mais recursos para a educação, sob a forma do financiamento público, vai em sentido contrário às diretrizes do capital, que tem força suficiente para barrar a partilha dos fundos públicos destinados a políticas de efetivação de direitos sociais. O caso mais emblemático disso está nos vetos ao Plano Nacional de Educação (PNE), ainda no governo FHC, apagando qualquer menção à ampliação de recursos à educação. A expectativa era de que o governo Lula, quando eleito, revertesse os vetos – expectativa que transformou-se em amarga nostalgia. O que se mantém, como lógica ordenadora das ações governamentais, é a drenagem dos recursos públicos ao pagamento dos juros da dívida pública, em detrimento de quaisquer planos.

Trata-se, portanto, de verificar em conjunto as transformações operadas na gestão das questões educacionais nos últimos tempos, quando cada vez mais se aprofunda a tecnocracia, como forma de racionalidade “eficiente” e “isenta” ao lidar com as questões de natureza política. Tais padrões de racionalidade destituem a política de seu lugar, despolitizam a sociedade, conformada com as avaliações quanto a viabilidade das transformações possíveis ou das transformações necessárias, ditas “tecnicamente inviáveis” – ou seja, é uma racionalidade avessa à transformação do real, cuja regra é otimizar a relação de “custo e benefício”, ou seja, conter os gastos e constranger qualquer possibilidade de mudança efetiva.

Com efeito, com a despolitização da sociedade, é a democracia que fica restrita. O poder se concentra – e escapa à vicissitudes da democracia, que encolhe. Os novos “mestres da verdade”, os detentores do saber técnico, desautorizam qualquer desejo, qualquer projeto de transformações profundas, que escapassem ao seu controle. A política se dissolve em “pesquisas de opinião”, que no entanto não enfrentam o espaço público aberto ao debate contraditório. Uma vez que as opiniões sejam aferidas e os especialistas são consultados, as decisões são tomadas e cumpre a todos obedecer.

O projeto tecnocrático na educação

Já em curso há algum tempo, o projeto tecnocrático para educação ganhou no governo Serra contornos mais nítidos, tornado-se um todo único e coerente, sem que tenhamos conseguido oferecer resistência suficientemente forte para reverter seu avanço. Em perspectiva, serão profundas as transformações nas práticas docentes e no perfil dos professores que ainda ingressarão na rede, dificultando ainda mais a resistência.

A tecnocracia arranca de cada um de nós a definição dos rumos a serem tomados, das decisões de como e porque fazer. Terceiriza nossa responsabilidade do planejamento curricular e da concepção educacional – agora a cargo de especialistas detentores de um saber técnico que os define de cima para baixo – enquanto os professores, na sala de aula, tentamos cumprir o que nos foi “proposto”, e melhor seria dizer “imposto”.

A tecnocracia objetiva uma gestão totalitária, isto é, que controle cada gesto e imponha o “padrão”. Não é ao acaso a aplicação das apostilas, da avaliação do estágio probatório. À obediência, premia-se com bônus – e, mais danoso: diante da prolongada precarização da carreira no magistério e do baixo grau de politização e de consciência de classe, a possibilidade de ganhos salariais a partir do esforço e do mérito individuais é um indutor poderoso de comportamento coletivo – não faltar jamais, seguir a cartilha, obedecer ao superior, preparar os alunos para as avaliações, responder o que se espera nas provas e provinhas – numa espécie de “adesão voluntária à imposição”, o que equivale dizer o aniquilamento do exercício autônomo da docência, bem como da autonomia da escola.

Contudo, ainda que essa gestão totalitária tenha força para conter pressões reivindicatórias, a tensão não se resolve porque a educação continuará em crise. As causas reais do problema da qualidade estão longe de ser resolvidas, as questões do “chão da escola” – infra-estrutura escolar, redução de aluno por sala, redução de salas por professores, jornada, etc. Tudo isso exige mais recursos para educação – em tempos em que a tecnocracia cuida de conter os recursos para o pagamento dos juros da dívida, e distribuir o pouco restante apenas como instrumento de efetivação do seu projeto.

Além disso, e por outro lado, porque a tecnocracia é avessa a ampliação da democracia, lutar contra ela é lutar pela radicalização dos meios democráticos de gestão, como eleição direta para diretores, garantindo participação ampliada da comunidade escolar – professores, pais, alunos – de modo a garantir a autonomia da escola, sem a qual não é possível uma educação de qualidade.

E a APEOESP?

A APEOESP tem uma história de importantes formulações e embates educacionais. No entanto, o nosso sindicato tem sido incapaz de fazer a grande disputa contra o projeto tecnocrático na educação.

A sua direção majoritária opera uma política voltada para a sua perpetuação no aparelho sindical e tem progressivamente aderido às idéias que norteiam a tecnocracia. Mudar a APEOESP é, portanto, fundamental.

Defendemos uma APEOESP na escola e na luta!

Nenhum comentário:

Postar um comentário