Páginas

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Carta Aberta à Presidenta da Apeoesp

sobre a “Reforma” do Ensino Médio

Cara Maria Izabel:

Soube por colegas que você anda por aí repercutindo minha intervenção no debate sobre a “reforma” no ensino médio promovido pelo Sindicato, em 26 de junho último. Fico agradecido. Contudo, gostaria de esclarecer o ponto de vista que adotei – pois tampouco a reportagem na última edição do Jornal da Apeoesp faz jus ao que defendi ali. Quando um argumento é lançado para além do seu contexto, em muitas vezes ele acaba por dizer algo que antes não dizia.

O encarte ao jornal intitulado “Parecer do Conselho Nacional de Educação sobre a proposta do MEC para o ensino médio” me parece fugir do que se espera do sindicato — em geral, prevalece na abordagem que se deu no texto um tom de adesão à proposta apresentada e de esclarecimento quanto ao que seria a interpretação correta do Parecer, papel este que não cabe ao sindicato, e sim aos proponentes da proposta, o MEC ou ao próprio Conselho, como forma de comprometê-los com as reivindicações dos professores. Portanto, caberia antes ao Sindicato – a despeito de quaisquer considerações quanto ao mérito pedagógico da proposta em si, o que sempre será discutível – apresentar criticamente as lacunas da proposta, as questões que deixam em aberto e que por permanecerem em aberto podem resultar, na prática, em prejuízo do nosso fazer pedagógico.

A “reforma” não é uma reforma e não precisaria dar conta de todas as questões, estamos de acordo. Entretanto, isto que eu disse não vem para salvaguardar a iniciativa do governo federal das críticas de que a proposta não responde aos desafios e dificuldades que nos defrontamos no dia-a-dia da escola. Se por um lado a proposta do Ensino Médio Inovador não é uma reforma, por outro, ela tem se apresentado assim, como um “ensaio” de uma reforma vindoura, um rascunho da reforma pretendida pelo MEC, o que se pode depreender das declarações de agentes do Ministério quando da aprovação do Parecer no Conselho Nacional de Educação.

Sob essa perspectiva, a proposta já é uma reforma, por paradoxal que pareça, mas uma reforma que já nasce “desfibrada”, para usar uma expressão do saudoso professor Florestan Fernandes. — É que, com efeito, ao avaliarmos a proposta, deveríamos levar em conta o restante das medidas adotadas pelo governo federal. Com efeito, há antigos obstáculos a serem enfrentados — e fica a questão se as medidas a serem adotadas estarão à altura de enfrentá-los.

Não compartilho de seu otimismo em relação à proposta. Sabemos que não se muda uma escola — e menos ainda, a rede de ensino toda — de uma hora para a outra, ainda mais se for partir das alturas das concepções curriculares. Se a proposta for mesmo um ensaio para uma reforma, não podemos avaliar essa mudança isoladamente, como se fosse só uma discussão de como melhor organizar o currículo. Resta saber se as condições necessárias no chão da escola para este currículo proposto foram, estão sendo ou serão satisfeitas, de forma que a política adotada agora para poucas escolas pudesse valer para todas depois. Trocando em miúdos: ou se alteram as atuais condições de trabalho, ou pouca coisa pode ser feita.

Neste quesito, o MEC atual não age diferente do MEC de antes: apresenta uma reforma fragmentada, em retalhos, emendando aqui e acolá medidas que, isoladamente, poderiam representar aspectos bastante positivos, alguns avanços — mas insisto neste ponto: tais avanços serão neutralizados se outras medidas deixarem de ser tomadas ou, pior, tomarão o sentido inverso, negativo, quando concorrem com outras medidas efetivamente tomadas. A impressão que se tem é que falta essa visão de conjunto; as propostas são sempre medidas muito paliativas, que não vão ao fundo das questões. Uma reforma deveria ter esta visão, mais completa, para que fosse possível superar as dificuldades que já conhecemos. Seria necessário termos uma visão mais sistêmica da educação, da educação como um todo.

Além disso, a proposta deve ser avaliada também conjuntamente com a política educacional efetivamente praticada nos Estados – e em especial em São Paulo. Considerando assim, estamos longe de ter as condições para este “currículo inovador” atendidas, a despeito das “boas intenções” do governo federal. Senão, vejamos.

Para qualquer experimentação pedagógica em que pretenda uma abordagem interdisciplinar, todos sabemos que se requer tempo para a discussão entre os professores para afinar encaminhamentos a serem adotados, para o planejamento do processo e sua avaliação; há também que se prever tempo para atualização e formação contínua daqueles que se envolvam no projeto. Esta condição temporal é de tal modo imperativa que, caso não seja satisfeita, toda experimentação dependerá da sorte e do acaso para vingarem em boas experiências ou, caso contrário, redundarão na frustração das tentativas, em equívocos quanto a concepções e encaminhamentos práticos, ou em práticas meramente protocolares, carentes de qualquer significado vivo, quer para professores, quer para alunos.

Este tempo é ainda mais imperativo quando, no projeto, está prevista a possibilidade de os alunos perseguirem trajetos próprios, segundo seus interesses, fazendo multiplicarem percursos possíveis; isso não se faz sem um bom trabalho de orientação da parte dos professores, o que também se requer tempo disponível para isso. Pois bem: o programa prevê que os professores tenham a jornada completa em uma única escola. Esta é uma condição indispensável para o cumprimento das prescrições curriculares sugeridas já pelos PCNs e encampadas agora pelo programa. Todavia, fica em aberto a composição da jornada de trabalho do professor, a proporção entre o número de aulas e as horas de trabalho pedagógico extra-classe, de modo a comportar, de fato e de direito, o tempo necessário para tais atividades.

A este respeito, vale lembrar do embaraço quanto à Lei do Piso Nacional do Magistério, para azedar qualquer otimismo. Vale rememorar: na primeira redação do Projeto de Lei do Poder Executivo (PL nº619/2007), nada se dizia sobre a composição da jornada. Foi na tramitação na Comissão de Educação, entre as várias emendas e substitutivos apresentados, que essa questão foi incorporada, prevalecendo no parecer do relator da matéria, senador Cristóvão Buarque (PDT-DF), que a jornada seria composta, no mínimo, por um terço previsto como trabalho pedagógico extra-classe, e assim o texto foi aprovado e sancionado pelo Presidente da República. No entanto, os governadores dos Estados de Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Ceará (e com apoio do governo de São Paulo) entraram junto ao Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, alegando, grosso modo, que a União não poderia legislar sobre a jornada de trabalho do funcionalismo estadual. Por consequência, ficou suspensa no STF os efeitos da Lei na composição da jornada.

Há quem diga que faltou ao governo federal ser mais incisivo em relação a este ponto, quando a questão foi suspensa no Supremo. Cumpre lembrar, ainda e entretanto, que as reivindicações históricas da categoria, que constam das resoluções da APEOESP e CNTE, têm como referência para o piso o valor correspondente ao salário mínimo calculado pelo DIEESE e, o que nos interessa aqui, a composição da jornada de 40 horas na proporção “1 para 1” – para cada hora em sala de aula com alunos, uma hora prevista de trabalho pedagógico extra-classe; tais reivindicações vêm ao encontro da garantia daquilo que o bom-senso pedagógico, para além do prescrito em PCNs e quejandos, impõe como condições concretas de trabalho para o professor, condições que contudo não foram satisfeitas, ou por omissão ou por um revés nas iniciativas adotadas.

Vamos supor por um momento que tais condições estivessem satisfeitas, em função de injunções econômicas e políticas diversas das que vigoram atualmente. Vamos supor, portanto, que o governo Lula cumprisse o programa para o qual fora eleito e assim fizesse derrubar os vetos ao Plano Nacional de Educação que Fernando Henrique Cardoso impôs às metas de investimento em educação. Com efeito, trata-se tão somente de uma suposição de que a educação, como ação prioritária do governo, não se tornasse secundária frente a outros compromissos assumidos — e o argumento vem para que não se diga simplesmente não serem possíveis atender a tais condições; “possibilidades” são criadas nas opções políticas e econômicas adotadas.

Talvez seja ocioso dizer, mas digamos ainda assim: a propósito do valor do piso, ele está muito aquém dos anseios dos profissionais da educação. Não se trata aqui de uma mera reivindicação sindical ou corporativa; mas da garantia de condições para que, de fato, um professor possa se dedicar a uma única escola, sem necessitar correr para outro emprego para lhe garantir o orçamento doméstico, donde resultará em mais sobrecarga de trabalho, minando a possibilidade de um trabalho minimamente satisfatório. Ademais, se apelássemos mais para o discurso vigente no mercado de trabalho, diríamos que o valor do piso a que se chegou é “pouco atraente” e “pouco competitivo”, do que resulta a evasão de bons profissionais que encontram outras alternativas mais rentáveis na iniciativa privada; as opções políticas do governo não fazem frente a este desafio.

Como se dará a proposta no Estado de São Paulo, por exemplo? As recém aprovadas jornadas de trabalho, a reduzida, de 12 horas (10 em sala de aula), e a integral, de 40 horas (33 em sala de aula!). Nem um terço, mas apenas um sexto da jornada em trabalho pedagógico. Na jornada reduzida, não há vínculo possível do professor com a escola para envolver-se em um projeto destes; na outra, a sobrecarga de aulas e as poucas horas restantes não resultarão em grande coisa.

Outra questão a ser enfrentada, e isso me parece urgente, é a da “autonomia da escola”. Para além da garantia legal, inscrita na LDB, a autonomia na prática exigiria um conjunto de medidas de fortalecimento da própria instituição escolar – democratização da gestão, eleição direta de diretores; no plano pedagógico, trata-se também de dinamizar outras formas de “formação em serviço” e dar efetiva garantia de autonomia escolar. No entanto, sabemos, as políticas educacionais estão na contramão, quando em São Paulo e em outros Estados se impõe um “currículo” e as respectivas avaliações de desempenho. Por outro lado, as iniciativas do governo federal não se diferenciam das políticas adotadas pelos Estados a ponto de fazer-lhes o efetivo e necessário contraponto. Pelo contrário, orientam-se em um mesmo sentido, quando a sanha avaliativa parte também do governo federal, com as provas padronizadas que induzem nas escolas a seguir a cartilha. Vide os exemplos da Prova Brasil e do Enem, que induzem e induzirão as redes, para serem bem avaliadas, a optar pelo “caminho suave” de converter o ensino em cursos preparatórios para tais exames, num arremedo de formação.

Ocorre assim que todas diretrizes e orientações de caráter propriamente pedagógico, quer venham da Secretaria da Educação, da CENP ou do MEC, seja de onde for, chegam às escolas menos como uma sugestão do que como a consecução de um programa ao qual as escolas devem aderir — a despeito de outras problematizações possíveis que levem em conta as especificidades de cada escola, do conjunto de professores que nela atuam e dos alunos que nela são atendidos. Resta uma aquiescência passiva dos professores, pois a adesão, insistamos, é traduzida como qualquer vantagem pecuniária para a escola ou para os professores – contra o que qualquer “argumento de princípio” é fraco, em tempos de profunda precarização da carreira docente.

Assim sendo, minha posição é de desconfiança, e não de saudação à proposta. Em tempos em que os anseios dos que atuam na educação pública são sistematicamente frustrados, por força das circunstâncias políticas adversas, o receio do novo não se dá por teimosia ou por medo, mas por uma dose de realismo que é resultado da experiência dos reveses de que padecemos ultimamente.

a) Eduardo Garcia C. do Amaral
Professor efetivo de Filosofia na rede oficial de ensino, SP
Coletivo Apeoesp na Escola e na Luta

Nenhum comentário:

Postar um comentário