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quinta-feira, 22 de julho de 2010

Enem falha em levar pobre à faculdade, diz ex-chefe do Inep

Enem falha em levar pobre à faculdade, diz ex-chefe do Inep
Mariana Desidério
Especial para Terra Magazine




Essa semana o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) divulgou os dados do Enem de 2009. E eles mostram que a desigualdade brasileira no que diz respeito à educação está longe de ser resolvida. Estudantes de regiões mais desenvolvidas - como o Sudeste - e de escolas particulares - como o colégio Vértice, de São Paulo - tiveram os melhores desempenhos.

Tudo isso, porém, não é novidade. É o que diz Otaviano Helene, ex-presidente do Inep e professor do Instituto de Física da USP. Ele afirma que o poder público já conhece as demandas da educação há muito tempo, mas não toma atitudes para resolvê-las. Este foi um dos motivos que levou Helene a deixar o Inep apenas sete meses depois de assumir a presidência do Instituto, em 2003.

- Faz muito tempo que a gente sabe que esses problemas existem. E tudo o que a gente faz é medi-los? Não tem sentido isso. Nenhum problema vai ser resolvido porque ele foi medido várias vezes. Parece um pouco uma cortina de fumaça.

Para o professor da USP, o Enem também não cumpre com seu objetivo inicial, de aumentar as chances de estudantes menos favorecidos entrarem na faculdade.

- O Enem veio mais para criar problemas do que para solucionar. Quando inventaram o Enem era pra dar uma oportunidade para os estudantes mais desfavorecidos. Tudo bobagem. O cara que vai bem no Enem, vai bem no vestibular de múltipla escolha, no dissertativo, em redação e em matemática. O cara que vai mal no Enem, vai mal em tudo.

Leia a íntegra da entrevista:

Terra Magazine - O número de escolas que ficaram sem nota do Enem por conta da baixa adesão de seus alunos ao exame foi de 34% em 2009. Este dado é preocupante?

Otaviano Helene - O preocupante nesses tipos de avaliação são outras questões. Por exemplo, a diferença de desempenho entre os estudantes em função da faixa de renda e das condições econômicas é muito marcante. É dolorosamente marcante. Isso é uma coisa absolutamente inaceitável no sistema escolar.
A gente está medindo com o Enem, com o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e com os antigos Saeb's (Sistema de Avaliação da Educação Básica) um problema que já tinha que ter sido solucionado. Faz décadas que está medindo. Faz muito tempo que a gente sabe que esses problemas existem. E tudo o que a gente faz é medi-los? Não tem sentido isso. Nenhum problema vai ser resolvido porque ele foi medido várias vezes. Esse é o grave problema de exames como o Enem.

O senhor acha então que esses dados sobre educação são supervalorizados?

Parece um pouco uma cortina de fumaça. Chama a atenção da população sem que o essencial apareça. Nós estamos cansados de saber que esses indicadores dependem muito fortemente das condições socioeconômicas da população. E a escola precisa ter um mecanismo para compensar condições desfavoráveis de estudo. A sociedade precisa criar um mecanismo para que dê efetivamente a mesma chance para o estudante pobrezinho das regiões atrasadas ou o bem de vida das regiões abastadas. Isso é republicano. Estou falando de coisas de 200 anos atrás. Não estou falando uma coisa revolucionária. Até hoje a gente não resolveu o problema, e se contenta em medir o seu tamanho. As escolas teriam que oferecer uma educação adequada para todo mundo, independente da renda. Esse negócio que aparece no Brasil que quanto mais bem de vida a pessoa, a população, a região, o entorno, a cidade etc, melhor o desempenho dela no Ideb, no Saeb, no Enem, isso não tem sentido. Isso tem que ser resolvido e não medido.

E porque o senhor acha que esse problema não foi resolvido?

A razão é que isso de forma alguma está dentro do programa das elites brasileiras. A elite que domina o país de todas as formas não se interessa por este problema. Não é um problema que diz respeito às elites. Então você tinha que ter um governo com compromissos com a população que enfrente este problema. Só que qualquer coisa popular, social, coletiva, de interesse republicano neste país, a elite sai, usando seus meios de comunicação e bombardeando aquela proposta. Isso tem que acabar. A população e os governos têm que enfrentar esta questão.

Que tipo de problemas as escolas apresentam hoje?

Hoje, 30% das crianças não acabam o ensino fundamental. A escola fica fragilizada frente a população. Os professores são criticados inclusive pelo secretário de educação. Os professores trabalham sobrecarregados, com um salário que para ter uma renda minimamente aceitável vai ter que trabalhar uma carga horária intolerável. As classes são superlotadas. Não há instrumentos de gratuidade ativa, que garanta aos estudantes frequentarem a escola independente das suas condições econômicas pessoais.

Isso tudo acaba culminando na pouca busca pelo ensino superior? Quais as consequências disso para o país?

As consequências são gravíssimas. No Brasil, o número de jovens engajados no ensino superior em relação à população total é, grosso modo, a metade do número de vários vizinhos nossos na América do Sul. Simplesmente a metade, não é que é um pouco a menos. E muito menos ainda quando comparado com os países desenvolvidos. Além disso, por causa da privatização, os cursos são de baixíssima qualidade.

Que papel o Enem tem nisso tudo

O Enem veio mais para criar problemas do que para solucionar. Se você lembrar no passado, no governo Fernando Henrique, quando inventaram o Enem, era pra dar uma oportunidade para os estudantes mais desfavorecidos. Diziam que o Enem ia medir habilidades e competências e o estudante menos favorecido, mesmo que não tivesse o conteúdo das aulas ia mostrar tanto habilidade e competência quanto os estudantes mais favorecidos. Tudo bobagem. Bobagem de ponta a ponta. O cara que vai bem no Enem, vai bem no vestibular de múltipla escolha, vai bem no vestibular dissertativo, vai bem em redação, em matemática. O cara que vai mal no Enem, vai mal em tudo.

Mas em algumas faculdades o Enem passou a ser o próprio vestibular...

Mas quem entra nessas faculdades com o Enem entraria com o vestibular. Não mudou nada. O peso do Enem no vestibular é desprezível. Você não mudou em nada o perfil de quem entra ou deixa de entrar nas universidades, principalmente nos cursos e nas instituições mais disputados. Não teve nenhum efeito no sentido de democratizar o acesso, coisa nenhuma.

Você foi presidente do Inep por apenas sete meses. Porque?

Eu saí por várias razões, inclusive por isso. Você tinha todas as informações sobre todos os detalhes da situação da educação no país, região por região, rede por rede (rede estadual, municipal etc). Tinha um mapa total. Mas as políticas educacionais, especialmente de estados e municípios, não passam por aí.

Elas não levam em conta esses dados?

Não levam em conta a realidade e continuam não levando. Você sabe quais são os problemas no ensino paulista com todos os detalhes possíveis. Sabe onde falta professor e porque falta. Sabe onde as salas são grandes demais, sabe porque os estudantes se evadem, porque eles vão mal, sabe onde faltam instrumentos de gratuidade ativa. Sabe que o salário do professor é, grosso modo, entre metade e dois terços do salário de outros profissionais com nível superior. Sabe de tudo, e nada é corrigido

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