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sábado, 17 de maio de 2008

Um Jornal e a produção da notícia

Eduardo Garcia C. do Amaral
Professor efetivo da rede estadual de ensino, SP

A Secretaria de Educação, diante das avaliações que fez através do SARESP e verificando que em geral há um desempenho insatisfatório dos alunos no que se refere às capacidades de ler e escrever, bem como de realizarem raciocínios lógico-matemáticos, decidiu elaborar um material, em formato de jornal, a ser distribuído para todos os alunos, da 5ª série até o ensino médio, com várias atividades que, em princípio, incidiriam sobre tais capacidades, a fim de recuperá-las e/ou desenvolvê-las. Como um esforço de “recuperação intensiva”, o jornal traz o conteúdo a ser ministrado em cada uma das disciplinas, aula por aula, para as primeiras seis semanas do ano letivo.

À primeira vista, a iniciativa mereceria aplauso. É o reconhecimento da Secretaria de que as coisas não vão bem na escola pública e que não se pode deixar as coisas como estão. Além disto, não se trata de uma iniciativa isolada – mas faz parte de um conjunto de medidas que a Secretaria vem anunciando e, com efeito, executando. Pois além do jornal, a Secretaria também definiu um novo currículo para toda a rede de ensino, de modo a padronizar os conteúdos e os tempos em que estes conteúdos são ministrados em toda a rede, a fim de garantir a todos os alunos o seu ensino. Mais do que isto, assim definiu também “expectativas de aprendizagem”, o que se espera que os alunos assimilem e, portanto, o que os professores ensinem. Tudo parece nos conformes do que se espera de uma gestão eficiente na educação, que zele pela qualidade de ensino. São medidas de impacto, se não no dia-a-dia das salas de aula e na aprendizagem dos alunos, seguramente impactam sobre a opinião pública de modo positivo, sobretudo quando recebem grande apoio da mídia.

“O jornal não é um jornal”

Antes de prosseguir, porém, quero desfazer aqui um mal entendido. O jornal não é um jornal. Para que fosse um jornal, não lhe basta ter o tamanho (bastante incômodo, aliás) de um jornal. Em um jornal, haveria editorial, editorias, reportagens, artigos de opinião e até mesmo crônicas e curtos ensaios. Haveria gráficos e tabelas também, como em qualquer jornal moderno que queira de modo “didático” dar-se credibilidade. Enfim, haveria textos de vários gêneros discursivos (necessários para o desenvolvimento da leitura “competente”, como se diz) e variados dados estatísticos, quantitativos ou qualquer coisa assim, cuja interpretação mereça ser trabalhada matematicamente.

Poderíamos até imaginar como lidar com um jornal em sala de aula. Ainda que se tratasse de uma imitação de jornal, mas que mantivesse a linguagem que lhe é própria, essa seria uma importante iniciativa de incentivo da leitura, desde que fosse um material referenciado na experiência real de leitura de um jornal. Seria, além disso, uma importante experiência educativa poder arrancar algum conhecimento partindo de matérias jornalísticas ou, o que me parece mais importante, elaborar com os alunos uma leitura crítica de um jornal, compreender a forma em que os textos são escritos, saber como a informação é produzida e criada, assumindo um ponto de vista nem sempre declarado. Saber enfim quais os critérios que entram em jogo para que um jornal forje para si mesmo sua “credibilidade”.

Portanto, não para tomarmos a informação jornalística de modo passivo, mas refletindo, analisando, criticando o que está escrito, esse seria um importante meio de educar para a cidadania, como se costuma apregoar por aí. Por que não? Pelo simples motivo de que governos, poderosos e a mídia usam de todos recursos “jornalísticos” para manter todos sob seu controle, isto é, o controle que exercem sobre a formação da opinião pública. Aprender na escola oficial a ler um jornal sem lhe dar credibilidade passiva, mas exercer sua leitura crítica, seria colocar a educação em marcha contra a ordem vigente, contra uma das formas em que o exercício de poder se dá. Obviamente, não foi esta a opção adotada.

Mais do mesmo

Se o “jornal” não é um jornal, o que ele é? Nada mais do que uma mera apostila, um “recurso didático” que nada tem de novo, como se quer fazer crer. Entretanto, a adoção de outro material já previamente existente (uma apostila ou um livro didático, por ótimos que fossem) não teria a mesma repercussão “publicitária” como a que foi alcançada pela iniciativa. O que se quer é ter impacto positivo na opinião pública, de uma gestão eficiente, competente e inovadora, que produziu ela mesma um material excelente para alcançar os resultados que se esperam.

Grosseiramente falando, desde que tudo dê certo, eis uma estratégia de campanha publicitária, que visa desde já alguma vantagem eleitoral nas próximas eleições, para os correligionários do governo estadual, ou para as eleições que virão depois, para o próprio governador José Serra que não esconde de ninguém seu desejo de tornar-se presidente da República. Não é ao acaso que, sem nenhuma necessidade pedagógica, o Jornal traga estampado na capa o nome  governador e da Secretária da Educação.

Afinidade de discursos

Por outro lado, este discurso vem acompanhado de outro, que já vem de há algum tempo e com jeito de campanha sistemática e contínua contra os professores, também com grande eco na mídia, que é o discurso da “desmoralização do magistério”: é veiculado que o grande problema da educação nacional é a má formação dos professores, individuando as responsabilidades pelo “fracasso educacional brasileiro”. Quando não é a má formação a única responsável, querem fazem crer que os professores agem também de má-fé: são faltosos, irresponsáveis, descompromissados.

Ocorre que, entre o discurso da gestão eficiente e o discurso da má formação e má-fé dos professores, há uma afinidade que poderia passar desapercebida. Um discurso reafirma ou confirma os termos em que o outro se dá. – Não será necessário, portanto, examinar o conteúdo do jornal em detalhe para a crítica.

Trata-se de demonstrar que os professores são incompetentes e que, com a iniciativa do tal jornal, a Secretaria conseguiu melhorar a qualidade da educação, sem precisar tomar nenhuma medida que resultasse em melhoria salarial, melhores condições de ensino, nem nada disso.

Como fazer? Ora, se os alunos têm um certo desempenho no SARESP quando as provas são feitas sem que os alunos tomem conhecimento prévio do que será pedido a eles, uma prova sobre o Jornal já deixa claro qual o conteúdo que lhes será solicitado. Estatisticamente, é certo que o desempenho médio dos alunos tende a melhorar – ainda que por mera repetição do que eles viram em sala de aula (ainda que não tenham aprendido); parece bastante provável que possam demonstrar os efeitos positivos de tão genial iniciativa. Onde estaria o problema, se não na incapacidade dos professores de planejarem suas aulas?

Adotar uma política de avaliação, tal como foi implementada – com imposição de conteúdos, seqüências didáticas preestabelecidas e uma “prova” como coroamento do processo, aferindo os resultados – faz das aulas um processo de adestramento dos alunos para este tipo de prova; adestrando-os, seguramente melhorarão seu desempenho. Isto certamente provarão as estatísticas.

Certamente, também, os resultados positivos ganharão as manchetes dos jornais, revistas, mídia. A produção da notícia, dela fazemos parte todos. Também os alunos. Os dados serão produzidos para confirmar nossa incapacidade docente (ou a superação dessa incapacidade, a título de “colaboracionistas”) e a eficácia dos gestores, da Secretária, do governador.

Caso contrário, se tudo der errado e os dados produzidos permanecerem sofríveis, a campanha de desmoralização dos professores será intensificada. E em ambos os casos, quem perde é a educação pública paulista.

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