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segunda-feira, 23 de março de 2009

O discurso oficial das competências

Eduardo Garcia C. do Amaral
Professor efetivo na rede estadual de ensino, SP.

Receio que o palavrório pedagógico da última moda pouco oriente o que fazer em sala de aula. Podemos todos assimilar o discurso – competências pra cá, habilidades pra lá – sem que isso represente qualquer mudança em nossa prática de ensino. Ora, os parâmetros e as orientações são tão genéricas que, por sorte ou azar, em nada interferem em nossa prática. No que se refere a valores a serem desenvolvidos, para a cidadania, fazemos o que podemos – ou seja, fazemos o que acreditamos. Capacidade de crítica, desenvolvimento intelectual e etc. Por outro lado, tenho uma certa resistência ao discurso dos Parâmetros (e por extensão, às diretrizes curriculares que o Estado de São Paulo baixou para cada uma das disciplinas escolares). Ou ainda, já não é receio, é temor: o discurso do enfoque na aprendizagem do aluno vem descaracterizar o ensino do professor. Essa contraposição, ao meu entender, não é só contraproducente, mas também falaciosa.

Quando falam em “competências”, a que exatamente se referem? Certamente poderão buscar a definição nos livros dos “papas da competência”. Pois então: qualquer definição que se apresente, por ser uma definição, ou ela é analítica – isto é, a descrição de algum fenômeno, tal como são as definições nas ciências da natureza ou na matemática – ou ela é programática – isto é, uma orientação de como as coisas devem ser observadas, como são as definições nas ciências humanas. Acompanho de memória os passos de algumas discussões com o Prof. José Sérgio Fonseca de Carvalho (FE-USP); no entanto, nada do que for dito aqui pode ser a ele imputado, é claro. (Para uma discussão mais pormenorizada, dele, indico o texto que foi publicado nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, nº 112, p.155-165, março/ 2001, disponível aqui.)

Nas ciências da natureza se requer, em geral, uma certa precisão, de modo que a uma definição segue-se uma demonstração; a definição nas ciências da natureza é, por assim dizer, a descrição de um processo demonstrável. Falamos da ciência, estrito senso. É claro que ao longo do desenvolvimento das ciências da natureza, mudaram-se definições e, em certo sentido, o modo pelo qual um determinado fenômeno deva ser observado, quando se opera na ciência uma mudança em seu paradigma, como nos lembra um teórico como Thomas Kuhn. Por outro lado, acompanhar as mudanças de paradigmas nas ciências é tarefa do historiador das ciências; o cientista, entretanto, reconhecerá as definições mais precisas na ciência básica ou avançada, no que está assentado na comunidade científica da qual faz parte.

Nas ciências humanas, por outro lado, as definições não são tão ‘precisas’ e raramente podem ser demonstradas no mesmo sentido em que são as da ciência da natureza; dependem, antes, da adesão (provisória ou convicta) a um determinado campo teórico, em que os conceitos são estabelecidos, através dos quais se pode interpretar um determinado fenômeno. A depender da teoria que se adote, muda a leitura do fenômeno – sem que haja razão suficiente para decidir entre a verdade ou falsidade de uma teoria ou outra, a não ser por adesão a uma delas. Portanto, aderimos a uma definição programaticamente, conforme a intenção de seguir o respectivo ‘programa’ teórico. Dito de outro modo, uma ‘definição programática’ é também uma decisão sobre qual opinião parece estar mais de acordo com a visão-de-mundo que se sustente (ou queira se sustentar), aquela que parece uma boa opinião (em grego, dogma, ‘o que nos parece bom’, cognato à palavra doxa, ‘opinião’).

Portanto, quando falamos de “competências”, nos referimos a determinados dogmas pedagógicos. Quando na Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996, e mais explicitamente no desenvolvimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais e todo o entulho pedagógico que veio no seu rasto, como provões, ENEM e que tais, optou-se por adotar a “pedagogia das competências”, com argumentos dito “científicos”, na verdade estabeleceu-se um programa – político, que se deixe bem claro – contrariando o preceito constitucional que afirma que o ensino será ministrado com base no princípio do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (CN, Art. 206, III). O preceito constitucional é sábio em identificar que questões e definições pedagógicas são programáticas e preferiu não definir os dogmas que precisariam ser seguidos.

Não há nenhuma evidência científica acerca das competências, como se quer fazer crer, querendo vender gato por lebre: ‘isto é científico e portanto não se pode discordar’, frase bem ao gosto dos tecnocratas de plantão. A não ser que sustentem seriamente que a definição de ‘competência’ corresponde a descrição de algum fenômeno natural observável, entraríamos num cipoal quanto a discussão sobre o estatuto científico das diversas teorias em psicologia. A diversidade e as disputas em psicologia, no entanto, nos parece ser sintoma de um estatuto que a dista das ciências da natureza e a inclui entre as ciências humanas.

Seja como for e salvo melhor juízo, a idéia de “competência” quer não só orientar um modo de observar o processo educativo, como também e sobretudo orientar uma ação pedagógica. É, no entanto, um ponto de vista, sob uma determinada visão-de-mundo, que podemos com toda legitimidade negar, recusar, discordar.

No entanto, quando a Secretaria de Educação brinda-nos com uma “cartilha” a ser seguida, baseada nos “papas da competência”, e não apenas induz, como também obriga a sua adoção – exigência das avaliações do desempenho dos alunos e da avaliação de “mérito” dos professores – é fazer do preceito constitucional letra morta, quando morre a autonomia docente.

Um comentário:

  1. Esse texto foi escrito já há algum tempo, no início de 2008, mas permanece atual. Está publicado também no outro blog, http://edu74.wordpress.com/2008/12/19/o-discurso-oficial-das-competencias/
    É isso.

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